terça-feira, 22 de julho de 2014

A quem desinteressar possa

Pronto. Resolvi falar. Vou logo dizendo que o que me fez falar foi meu olhar sobre o mundo, observando gente. Percebo, a cada instante, que também eu, de algum jeito, mesmo de um jeito desajeitado, também sou gente.
Então, resolvi falar. Pode até ser que você nunca mais venha a escutar isso de ninguém. Por isso, mais ainda, sinto urgência em comunicar, a quem desinteressar possa.
Você já pode ter desconfiado, ou, distraidamente, imaginado. Eu confirmo: o outro existe. Não é só dentro de você que existe o outro. Também, fora, em lugares que você nem imagina que existam, o outro continua a existir, à revelia de sabermos, ou não, a existência dele. Lamento muito mesmo, se você nunca quis escutar, nem desejou saber, ou pensar, a respeito. Pois é. Até cada um de nós é o outro, para o outro.
O outro aparece, de qualquer forma - velho, criança, mulher, adolescente. Tem o outro que passa pela gente, cansado, ou em plena forma de motivação. Não importa. Sempre há o outro - que chora, que canta debaixo do chuveiro, que vaga pelo shopping, que ensina a ler e escrever, que ri, que dorme embriagado na calçada, que fala, que solta bombas de efeito moral pelas ruas, que prepara chá de camomila, que grita, que tropeça, que vai ao teatro, que faz malabarismos no sinal, que retoca a imagem, que assalta, que gagueja, que toma banho de chuva, que reza, que remexe as lixeiras, que nem olha para o outro, que pode ser eu, pode ser você - qualquer um (outro).
Por todo lugar, sempre tem outro - outro na rua, outro na casa, outro na academia, outro no balcão, outro no elevador, outro na escola, outro no bar, outro no trabalho, outro na praça, outro na feira, outro na sala de espera. Às vezes, o outro acaba por silenciar, uma vida inteira, aprisionado numa moldura de fotografia amarelada. De todo jeito, o outro se faz presente desejado, passado descartado, ou futuro ignorado. Não importa. O outro vive, e respira pontos de interrogação, mesmo quando não quer pensar. O outro perambula, entre medos e desejos. O outro perde o sono, depois de abandonar os sonhos, e outro fecha os olhos, enquanto salta de bungee jumping.
O outro é aquele com quem a gente cruza na esquina, se esbarra na fila interminável - outro que nos ignora, outro que ignoramos. O outro dirige o carro com funk no volume máximo, e o outro ensaia no palco escuro. Enquanto o outro pratica Tai Chi Chuan, outro planeja assalto, numa saída de banco. Tem outro que chora, quando nasce, e outro que seca as lágrimas, na saída do cemitério. Tem outro que segura a mão da gente, quando todos os outros vão embora.
Ainda que a maioria continue negando, o outro existe. Pode ser eu. Pode ser você. Pode ser outro. O outro é sempre mais visto, quando está na nossa frente, em qualquer fila. Mas tem outro, ainda, que nos pergunta que horas são, e logo se mistura na multidão, sem tempo à gentileza.
Pronto. Falei. Querendo ou não, longe ou perto, a realidade mostra que o outro continua existindo - quem sabe, ignorando, de um jeito, ou de outro, a minha, ou a tua, existência. Ainda tem mais: num dia, numa noite qualquer, o outro, feito eu, feito você, também vai deixar de existir, neste mundinho. E chegarão outros, que continuarão existindo, e deixando de existir, nesta vidinha de tantos outros.

domingo, 13 de julho de 2014

(De segunda a sexta) Feira da felicidade artificial

Enquanto muitos teimam em reinventar a roda, estou lançando um negócio realmente inovador, no mercado das concorrências cada vez mais desleais e apelativas. Resolvi criar (de segunda a sexta) feira da felicidade artificial. Vou logo adiantando que não se trata de venda de produtos de segunda mão. Absolutamente. Tenho caixas, grandes e pequenas, todas lacradas, formatos variados, as quais recebo, sem eu ter feito pedido - às vezes, até desconheço o remetente. Todo mundo quer parecer feliz, e acaba repassando pra gente essas imagens, sempre novinhas em folha, tinindo, com tanto brilho.
E ainda tem gente que alimenta - se engasga - com a doce ilusão de que “todo mundo parece feliz, no universo virtual, na internet”. Que nada! Todo mundo quer parecer feliz, o tempo todo, no universo mais real, físico, humano mesmo. Dizem que os que ostentam felicidade, dia e noite, noite e dia, estão sempre nas rodas sociais, animando casamentos, batizados, e até velórios. Por isso, muita gente se preocupa tanto - não em querer ser, mas - em parecer feliz.
Devido ao grande estoque que tenho dessa felicidade artificial, que me chega, em bombardeios constantes, de todos os lados, resolvi fazer o maior negócio da minha vida: uma feira, para atender à maior demanda atual do mercado consumidor. Não aceito troca, nem devolução, sem direito a “test drive”. O estoque que tenho é diversificadíssimo - para todos os gostos e desgostos. Os produtos dessa feira não têm qualquer garantia, ou bula, manual de instrução, ou de destruição, pois depende do modo de usar de cada consumidor. Sabendo dosar a felicidade artificial, o tempo de validade pode ser bem maior do que se imagina - às vezes, pode funcionar por uma vida inteira.
Sem viajar na carona da imaginação, penso que a feira que estou lançando será o maior sucesso, em tempo mínimo, recorde absoluto. E, ainda, penso mais: as vendas dos 'produtos' que entorpecem o pensamento serão as maiores. Logo depois, outro sucesso previsto é a venda de caras e bocas, sorrisos e gargalhadas gratuitos e descontrolados, para serem usados nos hospitais e velórios.
Hoje, a ciência e a religião vendem a cura de todos os males. Mas só a felicidade artificial vende a imagem sem dor, sem sofrimento. Não são necessários tratamentos intermináveis - médicos e/ou religiosos. A felicidade artificial oferece efeito imediato, indolor, a qualquer olhar desinteressado (afinal, quem quer saber realmente do outro?). Em pouco tempo, a criatura se torna (aparentemente) feliz - às vezes, o efeito é tamanho, que ela mesma acaba se convencendo que a dor é pura invenção de gente melancólica.
Não posso esquecer do amontoado de futilidades, para escamotear qualquer sofrimento, angústia, dor, tristeza. A feira da felicidade artificial é tão variada, e cuidadosamente completa, que nem consigo lembrar do estoque todo, que continuo recebendo, a todo momento, em qualquer lugar - tudo encaixotado, no aguardo de uso desesperado. Se todo mundo quer parecer feliz, o tempo inteiro, não há melhor presente: comprar o produto dessa feira inédita, longe da televisão brasileira.
Aos chorões de plantão, àqueles que resistem bravamente, e continuam demonstrando tristeza, sofrimento, aviso: não adianta chorar, sem direito a descontos. Se ainda existem os que manifestam essas emoções (“bobagens!”) em público, acho que já estão tão isolados, pela boiada eternamente feliz, que vão querer pagar qualquer preço por uma caixinha de felicidade artificial. Comprem, na feira, e se esforcem para aprender o uso mais adequado - tem gente Phd nisso, numa vida cheia de fogos de artifício.
De brinde, um livro de autoajuda acompanha cada caixa de felicidade artificial. Afinal, nem todo dia, mesmo para quem está habituado a usar sempre, o artificial encaixa, não incomoda. Para continuar usando essa felicidade sem sentido, quando o que não é artificial desaba, nada melhor que um livrinho de autoajuda.
Observando os índices de mercado, percebo que tem um monte de gente investindo em produtos de imagem - botox, lipoaspiração, maquiagem definitiva, cremes milagrosos, etc e tal. Disso, o mercado consumidor está cheio. O fato é que a maioria não quer pensar, muito menos falar o que realmente pensa (se pensasse), não quer viver a própria vida. Se aparentar estar bem, o tempo inteiro, já é desgastante, imagine, então, parecer, ou, melhor ainda, convencer os outros que tem outra vida, que é feliz o tempo todo, plenamente - é o sonho de consumo da maioria. Nem estou pensando, neste instante, nas vitrines das redes sociais.
Se a maioria não quer parecer que sente dor - a dor que sente, sem querer -, só mesmo recorrendo à artificialidade. Ser humano é sofrer - prazer e dor.
Ninguém quer saber de gente que pensa, gente que sofre, gente que se entristece, gente melancólica. Por isso, tanta gente não quer saber nem de si mesma. Está cada vez mais difícil competir com tantas felicidades aparentes e constantes. Daí, o melhor mesmo é apelar, aprender a investir, vestir e trocar máscaras efusivas. Viva a felicidade artificial!...